segunda-feira, 23 de maio de 2011

Algum Outro Eu



"You Soiled My Woods" by Diane Allemandou
   Um profundo toque despertou algum outro eu. Suas asas definhadas se abriram para eclipsar o sol, mas nada além da sombra de um arbusto surgiu sobre a terra. Em seus olhos ludibriados a devassidão de um desejo por possuir todo o mel do mundo, e mesmo assim seus lábios virgens tremem com a brisa do hálito que anuncia o paraíso. Perdido numa noite sem fim ao seguir rumo ao horizonte da carne, sua língua incendeia ao tocar o solo molhado depois de uma chuva de verão. Triture as rochas que brotam em suas costas, nada de bom há de nascer de tanta inquietação! Fechar os olhos é inútil, não fará o mundo desaparecer, e muito menos te despertará para uma realidade de fascínios. Se uma flor brota no jardim, ela será nada além de uma dentre muitas, se uma flor brota no ermo, ela será exaltada como uma raridade. Mas uma flor é apenas uma flor, o que brilha aos olhos é o mundo improvável agarrado por suas raízes. Então abrace esse corpo que te evoca, faça-o tua morada, uma busca à tua fonte da vida, uma jornada para o céu, um cobertor de perdição! A mão nebulosa apanhou-me pelo tornozelo e me aspirou para as profundezas de algum outro eu.  Suas asas ressurgidas se alastraram pela abóboda celestial abafando o flamejante áureo, e nada além de sombras surgiram sobre a terra. Da sagacidade de sua alma verte a pura cobiça de afogar o mundo em sua peçonha, além de seus lábios libidinosos sorverem toda a brisa de Plutão. Arrastando a perdição da carne em meio aos destroços do dia sua língua carboniza a terra maculada depois do festim untuoso. Deite sobre o mármore excretado de suas vísceras, aguarde pelo sabor do fruto de toda brandura assassinada! Tuas órbitas vazadas drenam o mundo e lacrimejam o vazio, e erguerá do nada teu reino de vícios e encantos. A flor que morre no jardim será nada além de adubo para as outras, mas se uma flor morre no ermo, todo o esforço do mundo se perde em vão nas areias do tempo. Mas uma flor é apenas uma flor, o que brilha aos olhos é a satisfação que ela traz ao mundo depois de podada. Então se livre do corpo que te sufoca, uma fuga mundo a fora, a estreia do ocaso da vida, um atalho para o paraíso, o relento da redenção!

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Essa Minha Vida


"Shattered by Stephanie Shimerdla"
   Um golpe de sorte patrocinado pelo destino é a vida. Nada menos suspeito e improvável é esse mundo que me cerca, em sua arquitetura tão selvagem e racional. Como um mar que recusa a formar ondas apesar dos ventos que o açoitam, como uma involuntária e indesejada virtude que foi falsificada pelos meus medos, pelas minhas impossibilidades, como uma anomalia santificada escondida por mentiras é a vida. Cada dia é um agonizante arrependimento, onde o firmamento da alma corroída não mais sustenta as lágrimas que vertem do coração. Poderia haver celebração se o desfecho fosse alcançado pelo caminho excelso, mas é no caminho enfermo que repousa as pegadas, e ao chegar ao cimo da graça a lama dos pés suja o salão. Andar na lama, limpar os pés e esconder o tecido sujo: no mundo medíocre haverá estima enquanto os olhos não se encararem. Sossego misericordioso dessa capa abatida, que resguarda tal vexame ambulante, venha impedir que se desfaça em migalhas. Da boca agredida verte sangue e dor, na busca por alento verte desespero e lágrimas. Sentado à porta trancada, ouço clamores de vingança de quem deveria apaziguar e proteger. Abandonado, amedrontado, angustiado, humilhado, revoltado na noite escura berrando por abrigo, apenas para encontrar um vazio decepcionante. Nu e acossado enquanto o fracasso insiste em torna-se espelho e fantasiar maravilhas de sua óbvia pequenez. Mendigando por alguém que se sente ao meu lado, rejeitado e corrompido pelo suborno de uma amizade. Desilusão. Nada do que foi ensinado me tocou com suavidade. Ser o próprio bom exemplo, ser o próprio refúgio da tormenta, ser a própria boca que aconselha, e caminhar contra a dor que flagela a minha alma. O quê esperar da vida? Esperar algo por quê? Uma mão para segurar, um lenço para enxugar minhas lágrimas, um corpo para eu aquecer, olhos que me vejam, ouvidos que me ouçam, alguém para amar e odiar por todo o sempre. Se a felicidade for a solução que tornará insignificante todas as cicatrizes, que lançará espessa névoa sobre um passado alternado entre o vazio e a aflição, digo que a rejeito. Já que são os entulhos degenerados unidos por sangue, fel e lágrimas que edificam essa minha vida, e não posso desejar nenhuma outra, pois do contrário aspiraria à própria morte. O quê perpetra o pulsar desse coração é a consciência de ser melhor do que qualquer um que ousasse tolamente encenar esse meu golpe de sorte.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Percepções


"The ascend by Ludvigsen"
     A terra estremecida com as batidas de meu coração não pode ser sentida pelos pés que repousam em nuvens. Nas profundezas que habito não distingo o brilho de teus olhos do brilho das estrelas, e muito menos se eles me observam. Nas profundezas que habito tudo é tão obscuro e mais difícil de perceber, e a luz que incide de ti é tão forte que me ofusca. Deixa-me confuso. Deixa-me estranho. Brilhas para o mundo ou brilhas para mim? Daqui é tudo tão igual. Se meus pensamentos vibrassem nesse mundo, todos estariam surdos com o estrondo incessante de teu nome rompendo de minha alma, e queria que assim fosse, mas de minha boca calada e covarde não sai um só sussurro de desejo. Ah! Como eu odeio te adorar, caso apenas te desejasse, te tomava em meus braços e me contentava. Mas não quero só tua carne! Quero é teu carinho, tua atenção, teus cuidados, tua paixão. E com medo de ouvir um não, prefiro não ouvir nada. Sei que um dia, envenenado por esse amor reprimido, enlouquecerei e não mais suportando segurar essa represa, surdo e cego, jorrarei gritando por ti abismo acima. Só espero não passar do ponto, ir além das nuvens, e te assustar. Contudo se ao menos percebesse de ti, que eu ao bater à porta encontraria abrigo para meu coração no teu. Bastaria perceber de ti um quarto dos sinais que todos percebem de mim. Já que apenas os cegos não veem como meus olhos brilham ao te mirar por um breve instante, que é tudo o que suporto sem correr o risco de sumir em ti. Também, apenas os surdos não percebem a devoção em minha voz nas poucas vezes que digo teu nome, pois raramente me atrevo a evocá-lo com receio de por impulso dizer em seguida: ... te amo! Mas se tudo ao mesmo tempo em que é tão velado, é também tão óbvio, por que razão mantém-se tão indiferente? Será que essa indiferença já é para mim a tua resposta? Ou estou tão obcecado em procurar sinais em ti, que não vejo os que tu me mostras espontaneamente? Só temo que ao conseguir finalmente das profundezas que habito sair, a fim de ti alcançar, seja tarde demais, que os ventos tenham levado a nuvem na qual repousas para longe, para muito além do meu toque.